DIREITO E JURIMETRIA
Por Ricardo Zeef Berezin
Segundo pesquisa, indústria do dano moral é um mito
“Em Deus confiamos. Quanto aos outros, que tragam dados.” A frase, creditada ao estatístico americano Edwards Deming, talvez seja um pouco radical, mas cairia bem ao 2º Seminário de Direito, Estatística e Jurimetria, organizado na última quinta-feira (22/6) em São Paulo. O tom geral foi de que, embora os juristas e advogados do país possuam excelente nível, os números e as estatísticas têm muito a contribuir para suas decisões.
O seminário foi promovido pela Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ), uma entidade sem fins lucrativos que tem por objetivo investigar e incentivar a aplicação da estatística e da probabilidade no Direito. Compareceram personalidades como os professores Michael Heise, da Universidade de Cornell, dos Estados Unidos; Kazuo Watanabe, da USP; Flávio Luiz Yarshell, também da USP; Fábio Ulhoa Coelho, da PUC-SP; e Ivan Ribeiro, da Fadusp; além de Flávio Caetano, secretário de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça; Arystóbulo Freitas, presidente da Associação de Advogados de São Paulo; Marta Saad, presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais; Walfrido Warde Júnior, coordenador de pesquisas da ABJ; e Clávio Valença Filho, diretor do Centro Brasileiro de Arbitragem.
Por refletir sobre assuntos que transcendem o Direito, embora nunca o perdendo de vista, o evento não deixou de convidar matemáticos e administradores. O estatístico Carlos Eduardo Pereira Filho era um deles, e para mostrar como seu ramo de atividade pode contribuir com outras áreas, lembrou outro aforismo: “informação é aquilo que muda sua opinião”.
O estudo dos professores Bruno Salama e Flávia Püschel, por exemplo, ilustrou bem como a coleta de informações empíricas podem alterar alguns preconceitos. Suas conclusões, a partir da análise de 1.044 acórdãos, invalidam dois mitos: o de que existe uma indústria do dano moral no Brasil e de que falta uniformidade ao julgar casos do tipo.
“Os valores das condenações, pelo mesmo nas hipóteses que observamos, não nos pareceram elevadas”, disse Salama, pouco após revelar que 38% das indenizações ficaram em menos de R$ 5 mil e apenas 3% em mais R$ 100 mil. “Quanto aos critérios de cálculo, vedação a enriquecimento sem causa e proporcionalidade com a extensão do dano são bastantes comuns. Isto sugere uma preocupação com a moderação das decisões e prova que a tese da altíssima insegurança jurídica não tem sustentação.”
Flávia falou sobre a dificuldade na obtenção de dados, já que os tribunais não estão preparados para atender pesquisadores — sem contar aqueles cujos sites sequer funcionam. O professor Cássio Cavalli disse ter tido o mesmo obstáculo e contou um caso curioso. Em um trabalho para o Ministério da Justiça, sua equipe conseguiu um CD contendo a relação de todos os processos de falência, concordata e recuperação judicial desde 1986. Após a apreciação do conteúdo, no entanto, Cavalli estranhou o resultado e foi checá-los em uma comarca. Lá descobriu que mais de 98% das informações que possuía não tinha nada ver com o tema que desejava. Acontece que o sistema de classificação foi embaralhado na migração para o sistema unificado do Conselho Nacional de Justiça, e grande parte dos dados informatizados estão agora embaralhados.
“Posso afirmar com toda a convicção de que esse evento já é uma conquista, pois representa uma tomada de consciência”, afirmou. “Não é possível fazer Direito sem conhecer a realidade social com que ele lida, e a pesquisa empírica é fundamental para mostrá-la.”
Um começo feito de exemplos
“O sistema carcerário nacional é caótico, disfuncional e extremamente criminógeno”, apontou o conselheiro do CNJ Luciano Losekan. “Ele tem seguido a um único propósito: manter uma classe controlada a partir da prisão.”
Preocupado com essa situação, o CNJ editou em 2007 a Resolução 47, que obriga os juízes das varas de execução penal a, no mínimo uma vez por mês, inspecionar as unidades de sua jurisdição. “O magistrado que não visita, não conhece a matéria que está fervilhando no dia a dia dos presídios”, argumentou Losekan.
Graças às inspeções, uma série de dados foi obtida e, assim, em 2011, surgiu a ferramenta Geopresídios, disponível ao público em geral no site do Conselho. Ela dispõe das mais variadas informações sobre as penitenciárias: número de presos, taxa de ocupação, quantidade de fugas e de celulares apreendidos, qualidade da equipe técnica e da alimentação. “Tenta-se traçar um quadro completo.”
De acordo com Losekan, a população carcerária brasileira é de 515 mil presos — a quarta maior do mundo — dos quais 45% são provisórios. “Muitos também deveriam estar em regime semiaberto, mas não existe ‘vaga’ e eles têm de esperar meses. Isso é um caldo para revoltas e motins impressionante, que só não ocorrem por causa do controle exercido pelas facções criminosas.”
O presidente do Conselho Nacional de Política Penal e Criminal, Herbert Carneiro, embora elogie o esforço do CNJ, fez notar que o dados continuam subutilizados. Mencionou, por exemplo, a questão do monitoramento eletrônico para substituir a prisão preventiva. “Não se sabe quantos seriam os presos nem o perfil dos que poderiam se sujeitar a essa medida”, afirmou. “Os juízes sentem dificuldades porque não se construiu uma política pública para isso, e as coisas acabam sendo feitas aleatoriamente.”
Maiores litigantes
Por fim, ficou a cargo de Guilherme Werner, também conselheiro do CNJ, traçar um paralelo entre a Jurimetria e a administração da Justiça. “Seu objeto de estudo não precisa se limitar necessariamente às decisões, ela pode sair para o processo com um todo, dos administrativos aos procedimentos arbitrais”, defendeu.
Werner listou diversas fontes de dados que já estão disponíveis para análise, como as de agências reguladoras, o cadastro nacional de reclamações fundamentadas ou as tabelas de assuntos unificadas. Destacou, porém, o relatório dos cem maiores litigantes, por meio do qual é possível constatar que grande parte dos problemas que afligem o Judiciário em relação à morosidade pode ser atribuída ao mal funcionamento dos serviços públicos.
Identificamos pelo relatório de 2011 que 38% dos processos em tramitação eram de governos ou de órgãos governamentais, e outros 38% envolviam bancos, informou. “Algumas aplicações básicas se fazem com base nesses dados. A mais óbvia é a organização de mutirões de conciliação voltados a esses grandes litigantes.”
Para Werner, pode-se utilizar esses dados formais como subsídio para a atuação. “No Rio de Janeiro, por exemplo, fizemos um esforço nesse sentido (promoção de mutirões de conciliação) e os resultados foram impressionantes: com a Sky, todos os processos foram resolvidos por acordo; com a Ricardo Eletro, 91%, e com o Banco do Brasil, 85%”, exclamou. “Esses números, para quem não sabe, são quase inacreditáveis, porque o índice médio de conciliação global no juizado especial da vara cível é de 15% ou menos.”
Já o professor de administração José Mazzon começou sua fala solidarizando-se com os juízes por conta de um número revelado durante a palestra de Werner. “Mais de 80 milhões de processo em tramitação para 17 mil magistrados é pra ter pena deles, mesmo.” Em seguida, criticou a gestão do Judiciário, que ainda não saiu da cultura do papel e insiste em uma individualidade excessiva.
O corregedor-geral de Justiça do estado de São Paulo, José Renato Nalini, corroborou com a visão de Mazzon e discursou sobre a necessidade de o Judiciário se abrir. “Estamos coletando junto a todos os setores opiniões, sugestões, propostas que saiam de nossa visão míope, afinal, estamos deste lado do balcão e não podemos manter esse imobilismo”. Depois, concluiu com bom humor. “Uma vez, falando no Tribunal de Justiça, disse que alguém que tivesse morrido há 200 anos voltasse, teria um susto tremendo de verificar como as coisas mudaram. Ele só sentiria em casa em nosso salão nobre.”
Fonte: CONJUR – 22.06.12