Comentários às palestras proferidas na mesa-redonda sobre Solução Extrajudicial de Controvérsias realizado em São Paulo pela Associação de Advogados de São Paulo – AASP em pareceria com o Instituto Victor Nunes Leal, em 09/08/10.
Nova Ordem
Teve início ontem a semana cultural na AASP, que tem o objetivo de homenagear os advogados pelo 11 de agosto. Na abertura, o ministro Cezar Peluso falou sobre a dificuldade do Judiciário em solucionar conflitos. Num depoimento de quem conhece a fundo a Justiça brasileira, Peluso explicou que o ato de o juiz prolatar setença não é o melhor meio de pôr fim às lides, uma vez que as execuções forçadas, as quais sempre se dão, geram um novo processo. Nas mediações, ao contrário, há estatisticamente a quase totalidade do cumprimento dos acordos. Assim, para o ministro Peluso, deve haver uma transformção na atividade judicante, de modo que o magistrado do país compreenda que os meios alternativos de solução de conflito são instrumentos colocados à sua disposição e são fundamentais para a efetivação da Justiça.
Publicado no site Migalhas em 10 de agosto de 2010.
“Também é função do juiz pacificar conflitos”
Por Alessandro Cristo
A litigiosidade é um vício que prende a mentalidade tanto da sociedade quanto dos magistrados. Até a economia foi entorpecida, uma vez que muitos estudantes de Direito vêm no litígio uma forma de ganhar dinheiro, movimentando uma verdadeira fábrica de advogados. A única cura para a dependência é a adoção de métodos alternativos de solução de conflitos. Sim, o acordo pacífico sem solução judicial corta o mal pela raiz, porque não resolve apenas a demanda, mas também desestimula novos conflitos.
É assim que o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Cezar Peluso, pretende diminuir a quantidade de processos que chega todos os anos ao Judiciário. Em entrevista concedida nesta segunda-feira (9/8) em evento organizado pela Associação de Advogados de São Paulo, ele afirmou que métodos alternativos de solução de conflitos, como a conciliação, a mediação e a arbitragem, podem fazer muito mais do que reduzir a carga de trabalho do Judiciário. “A ideia é dar à própria sociedade uma via de se tornar mais pacífica”, diz. “Tentar resolver os conflitos de modo pacífico, com soluções que nasçam do diálogo dos próprios sujeitos do conflito é, do ponto de vista prático, extremamente frutífero.”
Para o ministro, métodos não judiciais de pôr fim a demandas não podem ser vistos apenas fora do Judiciário, mas devem se tornar uma prática do próprio Poder. Isso significa dizer que o anseio das partes e o costume dos juízes por sentenças definitivas precisam dar lugar a uma nova mentalidade. “Se nós sentarmos e conversarmos, tentando mudar essa expectativa em relação à sentença, tentando mostrar que ela não resolve nada e pode até criar outros problemas, então poderemos, de modo sistemático, mudar um pouco essa realidade”, diz.
Como forma de estimular a mudança, ele cita proposta feita pelo presidente Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais, o processualista e desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, Kazuo Watanabe. Ao Conselho Nacional de Justiça, Watanabe propôs uma norma que inclua nos critérios de merecimento para promoção de magistrados a quantidade de resolução de conflitos sem sentença. Hoje, apenas o número de decisões entra na avaliação.
Peluso vê na mentalidade litigiosa brasileira a explicação para o grande número de advogados, que contrasta com a defasagem, por exemplo, de engenheiros no país. “Há uma atração de estudantes para se dirigirem às faculdades de Direito porque elas acenam para a possibilidade de um exercício profissional vantajoso do ponto de vista econômico”, afirma. Segundo ele, se a vontade de brigar diminuir, a demanda por advogados também cairá, o que tornará mais interessantes carreiras técnicas como a engenharia.
O ministro concedeu a entrevista após a palestra inaugural da Semana Cultural em Cores, promovida pela Aasp em comemoração ao Dia do Advogado, em 11 de agosto. O evento acontece entre os dias 9 e 13 deste mês, na sede da entidade.
Leia a entrevista:
ConJur — O que falta para que métodos alternativos de resolver conflitos sejam uma fase integrante do processo de solução de controvérsias?
Cezar Peluso — Esse é um anseio comum nosso, que é o de transformar o uso de todos os mecanismos chamados de meios alternativos de resolução de conflitos em instrumentos de atuação do próprio Judiciário. O objetivo não é apenas incentivar que isso seja usado pela sociedade fora do Judiciário.
ConJur — O que precisa ser mudado?
Cezar Peluso — Queremos incorporar ao Judiciário, como instrumental, como mecanismo próprio, o uso desses meios como uma maneira de se responder alternativamente à solução por imposição de decisões e sentenças, e não apenas um meio alternativo a ser usado por outros organismos. O acesso ao Judiciário não pode ser apenas por meio de processos litigiosos como tal, mas também mediante alternativas que o Judiciário vai pôr à disposição da sociedede para resolver os conflitos de outros modos além dos meios tradicionais de adjudicação e produção de sentenças.
ConJur — No que isso é bom para o jurisdicionado?
Cezar Peluso — O usuário passará a ter a possibilidade de resolver seu conflito sem ter que aguardar a tramitação e o custo, não só material, mas também psicológico dos processos judiciais.
ConJur — Também é interessante para a Justiça, já que o número de demandas tende a diminuir?
Cezar Peluso — O intuito não é apenas reduzir a carga do Judiciário, não é esse o sentido. A ideia é dar à própria sociedade uma via de se tornar mais pacífica e diminuir, com isso a litigiosidade, de modo que o alívio ao Judiciário vai aparecer apenas como um subproduto de uma coisa muito mais importante, que é a pacificação social. Isso muda tudo. Tentar resolver os conflitos de modo pacífico, com soluções que nasçam do diálogo dos próprios sujeitos do conflito é, do ponto de vista prático, extremamente frutífero.
ConJur — Existe resistência à mudança?
Cezar Peluso — Não, o que há é falta da cultura. Temos que mudar a mentalidade. Os juízes, por falta de compreensão e preparação, têm a ideia, em geral, de que é mais importante para eles conduzir uma demanda com todas as vicissitudes e a demora que um processo implica. Isso acontece em todo o mundo. Não é só no Brasil que o processo é demorado. O fenômeno é universal. É preciso mostrar aos juízes que é mais importante para a sociedade que eles desenvolvam mais profundamente esses processos alternativos do que se ficar alimentando processos e a produção de sentenças. Isso significa mudar um pouco a concepção dos juízes a respeito do exercício das suas próprias funções, no sentido de que também passa a ser função dele tentar pacificar o conflito mediante o uso desses mecanismos que não são a via tradicional.
ConJur — O que está sendo feito em termos práticos nesse sentido?
Cezar Peluso — Estamos recolhendo subsídios para formular, a partir de uma proposta formal como a do professor Kazuo [Watanabe], um projeto que leve o Judiciário a adotar atitudes que signifiquem modos de tentar mudar toda essa estrutura e, inclusive, a mentalidade. Temos de mostrar para o Judiciário que isso também é meritório, e importante no plano social. Sabemos que não vamos colher os frutos em um ou dois anos, mas estamos plantando para colher a longo prazo, o que vai ser muito proveitoso.
ConJur — Como produzir essa nova mentalidade?
Cezar Peluso — Isso envolve uma série de mudanças que podem ser tomadas a partir de uma provocação aos próprios órgãos jurisdicionais. O professor Kazuo ofereceu algo muito interessante. O índice de pacificação dos processos nunca é levado em conta na apuração do merecimento dos juízes como critério de promoção na carreira. A regra geral é a estatística de quantas decisões e sentenças foram proferidas. Nunca se indagou dos juízes quantos processos terminaram sem sentenças. Hoje, a própria metodologia adotada no processo de apuração de merecimento é um incentivo à perpetuação dos processos. O que se ouve é: “aquele juiz, nesse mês, proferiu 200 sentenças”. Sempre fui contra isso.
ConJur — O senhor é contra o levantamento estatístico da produção dos magistrados?
Cezar Peluso — Fui por oito anos juiz de família e sucessões, e nunca tive preocupação nenhuma em mostrar estatísticas. Era capaz de permitir que as partes viessem conversar comigo — o que aconteceu muitíssimas vezes — durante mais de ano na tentativa não de dar uma sentença rapidamente, o que seria muito fácil. Tentava pacificar sobretudo na área de família, que envolve não só o marido e a mulher, ou o ex-marido e a ex-mulher, que estão ali, mas toda a constelação familiar e as pessoas adjacentes. Essa experiência de oito anos em varas de família me mostrou que o empenho pessoal do juiz em pacificar os litigantes é a melhor coisa que o Judiciário pode produzir.
ConJur — O advogado também precisa ser menos litigioso?
Cezar Peluso — Há uma cultura de cultivo da litigiosidade. Há uma atração de estudantes para se dirigirem às faculdades de Direito porque elas acenam para a possibilidade de um exercício profissional vantajoso do ponto de vista econômico, por viver da litigiosidade. À medida que a litigiosidade diminui, essa atração, do ponto de vista econômico, vai cair proporcionalmente, porque os estudantes vão pensar: de que adianta ser advogado se as pessoas já não estão litigando mais, e não estão dependendo tanto do exercício da advocacia? Nós então vamos poder aproveitar todo esse potencial em áreas hoje que o Brasil, na etapa de desenvolvimento em que está, precisa muito.
ConJur — Precisamos ter menos advogados?
Cezar Peluso — Enquanto hoje a China forma, aproximadamente, de 500 a 600 mil engenheiros por ano, e a Índia 300 mil, o Brasil forma 30 mil. Se não resolvermos esse gargalo da capacidade brasileira de estimular e manter seu crescimento de modo sustentável, vamos ter problemas um pouco mais adiante. A manutenção do ritmo de crescimento que temos hoje vai depender, sobretudo, da maneira como o Brasil vai responder a esse desafio da existência de técnicos. Eu fiquei muito feliz ao ouvir do professor Jacques Marcovitch, que foi reitor da USP e é um cientista, que o Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social tem na pauta da sua próxima reunião exatamente esse problema, de saber como o Brasil pode duplicar a formação de técnicos necessários para sustentar o ritmo do seu desenvolvimento econômico. Portanto, vejam como as coisas estão ligadas do ponto de vista social.
ConJur — O ordenamento jurídico estimula o litígio?
Cezar Peluso — O ordenamento brasileiro é como o de qualquer outro lugar do mundo, não precisa ser mudado. O problema é de cultura, de como se usa esse ordenamento, e de mentalidade sobretudo do Judiciário. A mudança depende também de uma provocação dos colaboradores do Judiciário. Temos que sensibilizar acadêmica e profissionalmente as faculdades de Direito para que incluam na grade curricular a preocupação com esses meios alternativos. Hoje, esse tema não faz parte de nenhuma grade. Não conheço ninguém que tenha se preocupado em dar aulas sobre essa matéria.
ConJur — A produção de sentenças não é uma praxe do próprio juiz, difícil de ser mudada?
Cezar Peluso — A produção de sentença é resposta do Judiciário à postura dos litigantes. São os litigantes que querem sentença. E é o juiz quem pode ter atuação decisiva e mudar a visão dos litigantes. Se nós sentarmos, como os juízes muitas vezes fazem com os litigantes, e conversarmos, tentando mudar essa expectativa em relação à sentença, tentando mostrar que ela não resolve nada e pode até criar outros problemas, então poderemos, de modo sistemático, mudar um pouco essa realidade.
Publicado no site Conjur em 11 de agosto de 2010.